Escrito por: CNM CUT
José Luís Fiori, para o Valor
Quem viveu e viu, ou mesmo leu ou escutou, a história da América Latina depois da 2ª Guerra sabe que neste início do século XXI acontece algo extraordinário neste continente, talvez uma ruptura revolucionária. Está em curso uma virada massiva e democrática à esquerda de quase todos os países da América do Sul. Quem está agora abrindo ou tentando abrir novos caminhos são homens que não pertencem às elites tradicionais, mas têm objetivos éticos, sociais e políticos muito claros, populares, nacionais e igualitários.
Lembranças e esperanças
Quem viveu e viu, ou mesmo quem leu ou escutou, a história da América Latina depois da 2ª Guerra Mundial, sabe que neste início do século XXI está acontecendo algo extraordinário neste continente, talvez uma ruptura revolucionária. Basta olhar para trás para perceber as notáveis convergências e continuidades que marcaram a história latino-americana: durante suas "guerras de formação", na primeira metade do século XIX; na hora de sua integração "primário-exportadora" à economia industrial européia, depois de 1870; ou mesmo no momento de sua reação defensiva e "desenvolvimentista" frente à crise mundial da década de 1930. Mas não há dúvida que depois da 2ª Guerra Mundial esta "convergência" aumentou muito mais, já agora com ajuda explícita da política externa global dos Estados Unidos.
Logo depois do início da Guerra Fria, ainda nos anos 40, quase todos os países do continente colocaram na ilegalidade, simultaneamente, os seus Partidos Comunistas. Apesar de que só em alguns casos a perseguição aos comunistas tenha chegado ao extremo do Chile, que os prendeu e confinou em campos de concentração nas regiões mais frias e desérticas do país. Na década de 50, esta mesma "convergência latino-americana" reapareceu na derrubada simultânea de vários governos eleitos democraticamente, como no caso da Guatemala, do Brasil, da Argentina e da Colômbia. Apesar de que só no caso da Guatemala houve uma intervenção norte-americana direta e a repressão e assassinato de mais de 200 mil pessoas - muito mais do que na Colômbia do ditador Perez Jimenez e na Nicarágua e Cuba dos ditadores Anastázio Somoza e Fulgêncio Batista, apoiados igualmente pelos Estados Unidos. Logo em seguida, nas décadas de 1960 e 1970, esta velha sintonia continental aumentou ainda mais depois da frustrada invasão de Cuba, em 1961, seguida de uma série de golpes militares que instalaram regimes ditatoriais em quase toda a América Latina. Apesar de que em nem todos os países as ditaduras tenham tido o mesmo nível de violência do Chile, onde estima-se que tenham morrido mais de 20 mil pessoas, e da Argentina, onde foram assassinados ou desapareceram cerca de 35 mil pessoas. Na década de 80, a redemocratização simultânea do continente ocorreu no mesmo momento em que a violência da "2ª Guerra Fria" (1982-1985) do presidente Ronald Reagan atingiu a América Central e o Caribe como se fosse um tufão. Mesmo quando ela não atingiu a todos com a mesma intensidade que a El Salvador, onde foram mortos ou assassinados, em poucos anos, mais de 75 mil salvadorenhos. Com o fim da Guerra Fria, na década de 1990, a "indução" norte-americana e a convergência dos "latinos" se deslocou para o campo das políticas econômicas. Como parte de renegociação de suas dívidas externas, quase todos os Estados da região adotaram um programa comum de políticas e reformas liberais que abriu, desregulou e privatizou suas economias nacionais, "clonificando" os governos neoliberais de Salinas, Andrés Perez, Menem, Cardoso e Fujimori.
Com o passar do tempo, entretanto, o novo modelo econômico instalado pelas políticas liberais não cumpriu sua promessa de crescimento econômico sustentado e diminuição das desigualdades sociais. Na virada do novo milênio, a frustração destas expectativas contribuiu, decisivamente, para a nova inflexão sincrônica do continente que está em pleno curso: uma virada massiva e democrática à esquerda de quase todos os países da América do Sul, e talvez, em breve, do México.
Neste sentido, a recente eleição de Evo Morales, na Bolívia, foi apenas um ponto de uma trajetória e de uma convergência que pode seguir durante o ano de 2006. Apesar de que nem todos os novos governantes tenham feito o mesmo que o presidente argentino, Nestor Kirchner, ao denunciar ao presidente Bush, face a face, na abertura da 4ª Cumbre de lãs Américas, que "as políticas aplicadas na América Latina, sob liderança dos EUA, não só provocaram miséria e pobreza , mas também instabilidade institucional em toda a região, com a queda de governos eleitos democraticamente...", e que "o FMI atuou em relação aos nossos países como promotor e veículo de políticas que causaram pobreza e sofrimento ao povo da Argentina".
Neste momento, esta nova situação emergente deixa no ar uma dúvida e uma decepção, mas também uma enorme esperança. Dúvida, com relação ao comportamento que terão os Estados Unidos. Neste ponto, a história passada não estimula otimismos, mas não é impossível uma repactuação da hegemonia norte-americana, dentro do "hemisfério ocidental", se os "latinos" souberem atuar conjuntamente. Decepção, com relação à pobreza das idéias e dos projetos dos social-democratas e dos conservadores neste momento tão desafiador da história continental. O debate político e ideológico entre os dois tem sido de uma mediocridade e monotonia indigesta, quase sempre sobre as milimétricas diferenças que separam uma socialdemocracia sem idéias próprias e um conservadorismo de uma idéia só, a do medo do "populismo macroeconômico". Mas mesmo fora deste "binômio", o "mundo das idéias" tem estado na defensiva e cumprindo apenas o papel de racionalizador de interesses específicos e muito transparentes. Além disto, não existe em lugar algum novas "síntese teóricas", "utopias empacotadas" ou projetos acabados na cabeça dos intelectuais. Por isso, na América Latina, quem está agora abrindo ou tentando abrir novos caminhos são homens que não pertencem às elites tradicionais e são pouco "cosmopolitas", mas têm objetivos éticos, sociais e políticos muito claros, populares, nacionais e igualitários. São críticos das políticas neoliberais e do intervencionismo imperial dos Estados Unidos, mas defendem um projeto político e econômico sul-americano que não desconhece a importância norte-americana, nem propõe nenhum tipo de isolacionismo "indigenista". Um bom ponto de partida, e motivo de justa esperança para quem já viveu e viu tantas derrotas da esquerda neste continente governado há tanto tempo por elites conservadores, quase sempre submissas e subalternas.
José Luís Fiori é professor titular do Instituto de Economia da UFRJ e autor do livro "O Poder Americano" (Editora Petrópolis). (Valor Econômico, 09.01.2006)