Escrito por: CNM CUT
Durante décadas, os mercados automobilísticos americano e mundial foram dominados pela General Motors (GM), Ford e Chrysler, as três principais montadoras dos Estados Unidos, denominadas Big Three. A partir da década de 1980, todavia, a liderança dessas companhias, alicerçada no modo de produção "fordista" e nos modelos de veículos com baixa economia de combustível, foi ameaçada. A difusão do "toyotismo" e a estratégia de internacionalização produtiva das empresas japonesas, notadamente Toyota e Honda, inclusive em território americano, caracterizaram o início de uma fase de expansão das montadoras asiáticas e retração das americanas.
As japonesas, dotadas de princípios distintos na gestão de produção e preparadas para atender a demanda por automóveis mais econômicos, conquistaram parcelas crescentes do maior mercado consumidor global. A paulatina perda de market share e os elevados custos vinculados a fundos de pensão e aposentadoria conduziram as corporações americanas a prejuízos recorrentes. A Toyota, por sua vez, tornou-se a maior montadora mundial.
Nesse mercado, o crédito sempre desempenhou papel fundamental, uma vez que as vendas do setor eram fortemente dependentes de financiamento. Ao captarem no curto prazo, principalmente no interbancário, e emprestarem no longo prazo aos consumidores, os bancos vinculados às montadoras viabilizaram tais operações e sustentaram a expansão do padrão de consumo dos bens duráveis. Porém, a incerteza generalizada em relação aos agentes detentores de ativos "tóxicos" e o aprofundamento da crise financeira internacional reduziram a liquidez interbancária, comprimindo o crédito.
A escassez de crédito e o desaquecimento econômico dos EUA agravaram um problema estrutural prévio. Ao inibirem as vendas e dificultarem o refinanciamento de dívidas, colocaram as montadoras, especialmente as americanas, em risco de liquidez e, em última instância, de concordata. Em dezembro, as vendas de veículos da GM nos Estados Unidos despencaram 31,4%; as da Ford, 32,4%; as da Chrysler, 53,1%. Essa queda acentuada, cujos efeitos se visualizam em termos de emprego, fechamento de fábricas e planos para redução de custos e obtenção de eficiência energética, enfatiza a defasagem produtiva e tecnológica existente entre empresas americanas e japonesas do setor, uma vez que estas se apresentam relativamente adiantadas no que concerne a custos produtivos menores e tecnologias "mais limpas".
Contudo, as montadoras americanas não foram as únicas afetadas. Com o aperto creditício, as vendas nos EUA, em dezembro, da Toyota e da Honda declinaram 36,7% e 34,7%, respectivamente. A Toyota prevê um prejuízo operacional que representaria sua maior perda em setenta anos de história. O arrefecimento da demanda por veículos na Europa atingiu, outrossim, montadoras, como Volkswagen e PSA Peugeot Citroën, que anunciaram, seja a paralisação temporária das atividades em algumas unidades produtivas, seja a demissão de funcionários. O governo francês, inclusive, sinalizou que deve ajudar as montadoras do país, prometendo garantias de 1 bilhão de euros para os braços financeiros de Renault e Peugeot. Isso aponta para o caráter global da crise. Entretanto, a gravidade do processo de contração da indústria automobilística parece maior para as Big Three, as quais lutam contra si mesmas para adquirirem maior competitividade e sobreviverem.
Em meio à crise, elas solicitaram empréstimos de US$ 34 bilhões ao Congresso americano, ao perceberem os efeitos que a falência de alguma concorrente poderia causar sobre a cadeia de fornecedores e as demais montadoras. O pacote de socorro de US$ 14 bilhões em empréstimos à GM e à Chrysler, votado favoravelmente na Câmara de Representantes, não foi aprovado pelo Senado. A fim de evitar o colapso de alguma montadora e a contração maior da economia, o Executivo decidiu conceder-lhes empréstimos de US$ 17,4 bilhões, sendo US$ 13,4 bilhões (US$ 9,4 bilhões para a GM), entre dezembro e janeiro, e outros US$ 4 bilhões posteriormente. Os recursos seriam provenientes do Troubled Asset Relief Program (TARP), sancionado pelo Congresso para resgatar o sistema financeiro.
Apenas GM e Chrysler foram contempladas. A Ford, em situação financeira menos desconfortável, precisaria somente de uma linha de crédito, caso suas finanças se deteriorassem em 2009. No final de dezembro, o Federal Reserve (Banco Central americano) aprovou a transformação da GMAC - agente financeiro da GM - em banco comercial. A nova instituição recebeu mais US$ 5 bilhões do pacote destinado a reestruturar o sistema financeiro. A reestruturação da GMAC, que financia 75% do estoque de veículos das suas concessionárias, foi considerada essencial para a própria sobrevivência da GM. O Tesouro americano decidiu emprestar mais US$ 1 bilhão à GM, para uma operação de recapitalização. A ajuda total recebida pela montadora somou US$ 15,4 bilhões. Em meados de janeiro, a Chrysler Financial recebeu empréstimo de US$ 1,5 bilhão, a fim de estimular o financiamento de veículos e recuperar as vendas.
Alinhado a esses resgates, o governo canadense conferiu empréstimos emergenciais de US$ 3,3 bilhões à GM e à Chrysler. Ao final de março de 2009, no entanto, a gestão Obama apreciará a viabilidade financeira das empresas, as quais deverão apresentar seus planos de reestruturação. Para reduzir salários e dívidas, estuda-se desde a renegociação de contratos com fornecedores e o sindicato dos trabalhadores, United Auto Workers (UAW), até a venda de marcas, geralmente deficitárias, pertencentes às corporações.
Tais acontecimentos exemplificam nitidamente como uma crise de origem financeira, combinada com fatores competitivos intrínsecos a cada setor, pode ser transmitida para a economia real, sobretudo pelo canal do crédito, e afetar distintamente as empresas, expondo as fragilidades de cada uma frente ao cenário desfavorável.
A declaração de concordata de uma montadora americana abalaria, indubitavelmente, não apenas a indústria automobilística, mas também a economia americana como um todo, empurrando-a para uma recessão ainda mais profunda, devido à representatividade das empresas no setor e ao forte encadeamento entre essa indústria e as demais. Diante disso, observou-se novamente a necessidade de intervenção do Estado, cuja atribuição de emprestador de última instância se estendeu para a esfera produtiva. Sem a perspectiva de um reaquecimento da demanda no curto prazo, adotou-se a solução temporária menos trágica: a salvação das Big Three pelo Big Government.