Escrito por: CNM CUT
O que mudaria na relação entre o Brasil e os demais países, caso Geraldo Alckmin vença as eleições? Especialistas discutem os temas mais relevantes da área, tendo em mente as mudanças da política externa brasileira nos últimos 4 anos.
SÃO PAULO - Pela primeira vez, desde a redemocratização do país em 1985, a política externa brasileira ganhou espaço na eleição presidencial. Tanto o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), como o candidato Geraldo Alckmin (PSDB), têm falado do assunto com regularidade nas entrevistas coletivas e debates. A atuação do Itamaraty é uma das principais bandeiras levantadas pelo PT para defender o atual governo em comparação com a administração anterior, de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002).
O cientista político Marcelo Coutinho, coordenador executivo do Observatório Político Sul-Americano, explica que o fato da política externa ter voltado ao debate político se deve a razões 'estruturais'. 'O Brasil está cada vez mais internacionalizado, o que acontece lá fora nos afeta diretamente. Há um processo de internacionalização das empresas, o papel crescente desempenhado pelo país no exterior e os efeitos da globalização', justifica.
A postura ofensiva do Itamaraty, liderada pelo ministro Celso Amorim, gerou uma 'reação' da oposição. 'É uma tentativa de desconstruir esta bandeira. A alegação é que o governo apenas continuou alguns aspectos de FHC e inovou para pior em outros', explica Coutinho. 'Acontece que a política externa é justamente um ponto de diferenciação de Lula em relação ao governo passado. Ela é mais assertiva, numa avaliação que a política anterior seria subserviente e não atenderia aos interesses nacionais', analisa Coutinho.
Onda antineoliberal
Alguns episódios contribuíram para consolidar o tema na agenda política nacional. O recente impasse do gás com o presidente boliviano Evo Morales, a ascensão internacional de Hugo Chávez e as afinidades do Brasil com a onda anti-neoliberal da América Latina serviram de munição para as críticas da oposição.
Alckmin acusa o presidente Lula de ter 'politizado' a diplomacia brasileira durante os quatro de gestão, o que ele considera um grave erro. A tese é reforçada no artigo publicado em 10 de outubro no jornal O Estado de S. Paulo, pelo ex-embaixador do Brasil nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha durante o governo FHC, Rubens Barbosa. Ele pondera que no governo Alckmin a política externa será tratada 'dentro de uma perspectiva de médio e longo prazo, em que o interesse nacional está acima das visões conjunturais, ideológicas ou de governos que passam'.
Atual porta-voz de Alckmin nos assuntos referentes à política externa, Barbosa condena o que chama de 'filiação a grupos específicos na tentativa de partidarização dos quadros do Itamaraty' e salienta que as relações internacionais são 'seguramente o setor de maior contraste e diferença entre os programas de governo do PT e de Alckmin'.
Na opinião do economista Paulo Nogueira Batista Jr., da Fundação Getúlio Vargas (FGV), 'toda política externa é politizada por excelência'. 'Quando, por exemplo, o Itamaraty adota uma posição mais próxima dos EUA, ninguém reclama que há uma 'politização' na área', ironiza.
Marcelo Coutinho vai além e diz que nas relações internacionais ainda é possível delimitar distinções concretas entre os projetos do PT e PSDB. 'As principais diferenças são de grau, ênfase e prioridades', esclarece. Com Lula, 'há uma união com o Sul, através da integração física, produtiva e energética'. A criação do G-20, do Gasoduto do Sul, a integração da moeda e a formatação das políticas macroeconômicas e do Parlamento Comum, são exemplos citados que caminham neste sentido. O Parlamento Comum ainda precisa da aprovação da Câmara dos Deputados da Argentina para entrar em vigor.
Mudanças de enfoque
Alckmin, por sua vez, alteraria o enfoque das alianças. 'As diretrizes iriam recair sobre os acordos econômicos com os Estados Unidos, Europa e países centrais do Norte. Só que a política externa é um problema mais de Estado do que de partido. E a diplomacia brasileira é muito forte. Possui um corpo burocrático consolidado e eficiente, de tradição multilateralista e de conciliação', alerta Coutinho. Para ele, no atual momento, os países não estão em busca de 'líderes' ou 'gerentes', e sim de 'parceiras'.
'Já está consolidada uma percepção geral nos Estados emergentes que eles não têm condições de participar do jogo global de maneira individualizada. Quanto mais coalizões, melhor'. Por isso, acredita Coutinho, uma eventual "clivagem ideológica" com a vizinhança sul-americana gera um foco de instabilidade.
'A volta do PSDB seria contra-corrente. A situação poderia caminhar para uma animosidade e paralisia dentro do Mercosul. Alckmin tende a ser mais conflituoso com a Venezuela. Chávez, por exemplo, poderia se referir a Alckmin como se refere a Bush', prevê. Além disso, sustenta Coutinho, estaria aberto o espaço para o ressurgimento da proposta da Alca. 'O Mercosul não toparia. É contra. E um possível governo Alckmin poderia até optar por acordos bilaterais com os Estados Unidos'. O cenário mais dramático seria uma mudança generalizada na política de forças na América do Sul e um estreitamento de laços com os EUA. 'O Brasil pode ficar isolado', sugere.
FHC e o 'terceiro-mundismo'
Durante o mandato, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso deu a seus chanceleres, Luiz Felipe Lampreia, entre 1995 e 2001, e Celso Lafer, a partir de 2001, algumas determinações políticas claras. A principal delas, era desmontar as articulações do país com outras nações em desenvolvimento no que se convencionou chamar de 'terceiro-mundismo'.
Na tentativa de afirmar a autonomia do país em relação aos Estados Unidos, alguns governos brasileiros na segunda metade do século passado se aproximaram do movimento do Terceiro Mundo. Durante a breve administração João Goulart, por exemplo, o Brasil teve papel relevante na formulação de alguns princípios teóricos.
O pronunciamento do então chanceler João Augusto de Araújo Castro à Assembléia Geral da ONU, em 1963, ficou conhecido como o Discurso dos Três D - desenvolvimento, descolonização e desarmamento - e adicionou ingredientes econômicos ao ideário do grupo dos 'países não-alinhados', embora o Brasil nunca tenha ido além da condição de observador do movimento.
Fernando Henrique assumiu com clareza a opção de integrar o país ao chamado 'consenso de Washington' e, para conquistar a confiança dos EUA, determinou que fosse eliminado o suposto 'entulho terceiro-mundista' do Brasil. Para a oposição da época, a inclusão do país no esquema da globalização o colocava em situação de permanente vulnerabilidade devido à dependência de investimentos e capitais externos.
Uma das mais polêmicas negociações envolvendo os EUA ocorreu após os atos de terror contra o World Trade Center e o Pentágono, em 2001, já no final do mandato. O Brasil autorizou George Bush a abrir em São Paulo um escritório do Serviço Secreto dos Estados Unidos, que teria a missão de 'apurar crimes financeiros' relacionados com o seu país. A decisão provocou críticas de analistas políticos e integrantes dos partidos de oposição, que a consideraram um sintoma de perda de soberania nacional.
Diplomacia presidencial
Outro traço fundamental da política externa da era FHC foi o exercício pleno da chamada 'diplomacia presidencial'. Entre outras características, era marcada pela quantidade, sem paralelos no passado, de viagens ao exterior feitas pelo presidente, com ampla cobertura dos meios de comunicação, e as visitas à Brasília de influentes chefes de Estado e de governo.
Neste ponto, observa Batista, há convergências entre o estilo de condução de Lula e FHC. 'O Lula também faz a diplomacia presidencial. Porque ele é uma figura proeminente no cenário internacional devido ao seu perfil, origem sindical e caráter inusitado da vitória eleitoral. Isso teve uma forte ascensão no início do governo, mas depois perdeu um pouco a novidade e o brilho por causa do baixo crescimento econômico, num certo sentido uma continuidade do governo anterior'.
Durante o governo do PSDB, o Ministério das Relações Exteriores cuidava, principalmente, da parte técnico-burocrática das negociações. FHC dominava pessoalmente a parte política e o ministro Pedro Malan a agenda econômica internacional. Mas isso não isenta, na opinião de Batista, o papel desempenhado pelos ministros, sobretudo Celso Lafer, duramente criticado pelas 'iniciativas e atitudes subservientes e servis' em relação a Washington. 'Lafer foi, sem dúvida, o pior ministro das Relações Exteriores que o Brasil já teve', critica Paulo Nogueira Batista.
Para ele, a política externa brasileira sofreu mudanças importantes em comparação com o governo FHC. 'Agora ela é mais independente. Na época de FHC, era mais próxima aos interesses dos Estados Unidos, apesar do Brasil nunca ter sido um 'México' ou uma 'Argentina
de Menem'. Lula não fez ruptura, nem criou desavenças ou conflitos. Mas há diferenças de orientação entre os dois governos e as mudanças foram feitas sem grande estridência'.
Entre 1995 e 2002, outro sinal da ênfase no econômico-financeiro, em relativo detrimento do político, foi o fato de o FHC ter, na prática, deixado de se esforçar no intuito de integrar o Conselho de Segurança das Nações Unidas na condição de membro permanente, aspiração tradicional do país desde o início da ONU, em 1944.
Mais de uma vez, em público, Fernando Henrique declarou que, na sua opinião, muito mais importante de que o assento permanente no CS seria o Brasil passar a participar como convidado, a exemplo da Rússia, das reuniões do Grupo dos Sete (países mais ricos do mundo). Esse objetivo, no entanto, o presidente não chegou a realizar.
Como o governo Lula conciliou uma similar ortodoxia na política econômica com uma prestigiada e heterodoxa visão de política externa? Foi um nítido "avanço", concordam Coutinho e Batista. No entanto, os dois analistas possuem avaliações opostas na tentativa de decifrar a mesma conjuntura.
Para Coutinho, o governo mostrou que é possível combinar as duas frentes. 'A ortodoxia na política econômica inclusive permite ser mais ousado na política externa e atuar em vários âmbitos. Se for habilidoso, por exemplo, nos acordos com o FMI. A Argentina adotou uma postura heterodoxa no combate à inflação e nos métodos de crescimento elevado, e partiu para o enfrentamento com o FMI. Tanto para a Argentina como para a Venezuela de Chávez, hoje é difícil conseguir uma cadeira na ONU, devido às posições políticas'.
Batista discorda da teoria. 'É preciso entender que a política externa possui caráter econômico, político e cultural. Ela se faz também no âmbito da política econômica. Uma visão tacanha no Ministério da Fazenda compromete o desempenho da política externa. A conciliação não pode se dar sem conflitos. A Fazenda atuou de forma desfavorável à Argentina durante a renegociação da dívida. Isso pode prejudicar as alianças estratégicas'. (Maurício Reimberg) (Carta Maior, 12.10.2006)